Indústria alimentícia
Fazendo a diferença na indústria alimentícia
Nem consultório, nem hospital: para muitos nutricionistas é na indústria de alimentos que existem os desafios mais interessantes da profissão. Seja pela oportunidade de contribuir para a saúde coletiva, no desenvolvimento de opções mais nutritivas e adequadas a diferentes públicos; seja pela possibilidade de seguir uma carreira multidisciplinar e marcada por constantes desafios, muitos nutricionistas realizam-se nas grandes corporações que, dia após dia, assemelham-se menos a “fábricas de alimentos” e mais a grandes centros de pesquisa científica.
“A indústria de alimentos faz parte da área de nutrição na cadeia de produção, na indústria e no comércio de alimentos”, afirma Albaneide Peixinho, que até maio de 2019 ocupava o cargo de presidente do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN). “Dentro da indústria alimentícia, é possível atuar com pesquisa e desenvolvimento de produtos, cozinha experimental, produção, controle da qualidade, promoção de produtos, serviços de atendimento ao consumidor e até mesmo com assuntos regulatórios”, acrescenta. “Essas possibilidades estão abertas aos nutricionistas, conforme está previsto na Resolução CFN 600/2018 do CFN”, assinala Albaneide.
A ex-presidente do CFN destaca que o nutricionista tem um papel importante para a sociedade quando atua na indústria: “a relevância dessa área diz respeito a qualidade e à segurança dos produtos que chegam à mesa do consumidor, seja porque esse profissional zela pelo respeito às normas de regulamentação, seja porque ele é o mais apto a propor melhorias no produto e nas suas propriedades organolépticas e nutricionais”, ela ressalta. “É por isso que o profissional que trabalha na indústria precisa ser muito bem preparado”, prossegue. “Ele deve conhecer as peculiaridades de cada segmento alimentício. E aqui cumpre lembrar que a indústria de alimentos pode ser voltada a fins especiais, proporcionando opções adequadas para quem sofre alguma restrição alimentar e necessita, por exemplo, de fórmulas dietoterápicas ou de produtos sem lactose, sem glúten etc.”, finaliza Albaneide.
Impactando o grande público
Especialista em nutrição pediátrica, Elizabeth Vargas trabalha na Unilever, onde é gerente de Assuntos Regulatórios para a América Latina. Com uma trajetória de mais de 20 anos na indústria de alimentos, ela conta que já atuou em controle de qualidade de lácteos, atendimento ao consumidor, pesquisa e desenvolvimento e comunicação.
Ao longo desse tempo, a possibilidade de fazer um trabalho que pudesse impactar positivamente um grande número de pessoas foi o que mais a seduziu. “As inovações produzidas pela indústria alimentícia são gigantescas e permitem fazer a diferença na vida de muitas pessoas”, constata.
Maria Gandini, gerente de Marketing na Danone Nutricia, também avalia que a indústria foi o ambiente onde melhor pôde desenvolver suas potencialidades. “Desde que comecei a cursar Nutrição, no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, nunca me imaginei atuando em hospitais ou abrindo um consultório”, relata. “Sempre gostei de business, de me envolver em projetos e trabalhar com equipes e departamentos multidisciplinares. Para me preparar adequadamente, optei por buscar outras formações, visto que a faculdade, na época em que eu me formei, não dava a ênfase devida a esse possível caminho profissional”, diz. “Fiz uma pós e um MBA em Marketing e busco me atualizar sempre com muita leitura e contato constante com profissionais que me inspiram nesse ramo. Em 2011, ingressei na Danone, já dentro da Gerência de Marketing”, completa.
Elizabeth também buscou formações complementares para enfrentar o desafio de atuar no segmento industrial: “Fiz especialização em Engenharia de Alimentos e entendo que o próprio trabalho nos traz aprendizagens constantes. Manter-se atualizada é essencial”, assegura. “Precisamos ter sempre no horizonte qual é o cenário atual; a prevalência de doenças crônicas na população; o aumento de problemas como obesidade; alergias alimentares etc.”, diz.
Maria e Elizabeth salientam que a indústria alimentícia é hoje um espaço de pesquisa e desenvolvimento científico, focada em suprir necessidades cada vez mais específicas. Há fórmulas e suplementos infantis desenvolvidos para momentos e necessidades especiais de bebês e crianças; suplementos alimentares desenhados para auxiliar na cicatrização de úlceras por pressão – e que, por isso, são ricos em proteínas e em micronutrientes relacionados à cicatrização, tais como o zinco e o selênio –; e, ainda, opções para alimentação enteral, suplementação da dieta de idosos e de pacientes oncológicos, entre outras soluções em nutrição especializada.
No momento, Maria trabalha com a linha de fórmulas para crianças com alergias. “O número de casos de alergias alimentares aumentou dez vezes nos últimos 11 anos e a condição atinge uma em cada 18 crianças brasileiras. Com o propósito de melhorar a qualidade de vida dessas crianças e transformar vidas por meio da nutrição, buscamos conscientizar as famílias que convivem com as alergias alimentares. Além de trabalhar constantemente na qualificação da nossa equipe de visita médica, contribuindo para que os pediatras tenham mais informações para a identificação e o tratamento da alergia à proteína do leite de vaca, cuja prevalência é de aproximadamente 5,4% no Brasil”.
Elizabeth complementa: “dentro da indústria, fazemos com que a população tenha acesso às opções de que necessita de maneira rápida, acessível, segura e a um custo certamente menor do que se dependesse de soluções individualizadas, artesanais e caseiras”.
Aspectos regulatórios
Uma das atribuições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é controlar alimentos e ingredientes. Uma rápida consulta ao site da autarquia nos mostra que existem mais de 150 normas, entre leis, portarias e resoluções, que precisam ser obedecidas pela cadeia produtiva de alimentos.
A complexa regulação do setor abrange mais de uma centena de tipos de alimentos, desde os mais triviais – como o café, a água (há resoluções e portarias específicas, por exemplo, para água envasada, mineral, adicionada de sais e até gelo), o chocolate, as frutas (secas, frescas, cristalizadas etc.) e os pães – até os mais complexos, como os “alimentos irradiados” (submetidos a alguma forma de radiação em seu preparo), os alimentos enriquecidos, os de tipo light ou diet, as fórmulas infantis, as dietas entéricas etc. Também há casos em que as regulamentações parecem se sobrepor, ou mesmo colidir. Por exemplo: existem as categorias “condimentos” e “temperos”, bastante semelhantes entre si; há também o caso coco: existem normas sobre coco relado, leite de coco, alimentos com coco etc.
Para Elizabeth, que atua diretamente com os aspectos regulatórios, o Brasil tem algumas iniciativas de alta qualidade no tocante à indústria de alimentos. “Em muitos países, não existe um alerta importante como, por exemplo, sobre a presença de glúten em determinado alimento, mesmo que essa seja uma informação crucial para um consumidor celíaco”, observa. “O Brasil foi um dos primeiros países a ter rotulagem nutricional de alimentos, algo essencial para garantir, ao consumidor, direito ao acesso às informações”, ela ressalta.
“No começo da minha vida profissional, a pessoa precisava ligar no Serviço de Atendimento da empresa para saber mais detalhes sobre determinado alimento”, relembra a nutricionista. “Desde 2003, porém, as regras foram harmonizadas, com a agregação, por exemplo, de recomendação relativa à porção ideal”, informa.
Além dessa infinidade de normas legais, as indústrias de alimentos precisam adequar-se às diretrizes apresentadas no Guia Alimentar para a População Brasileira. Este, em sua última versão (concluída em 2014 e disponível para download), reúne conceitos e recomendações para uma alimentação saudável. Elaborado pelo Ministério da Saúde, em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP), o Guia divide-se em cinco capítulos que abordam diferentes temas, como: a escolha dos alimentos, a preparação e os “truques” para driblar os fatores que, no dia a dia, podem prejudicar uma dieta mais saudável.
No entanto, alguns aspectos do Guia vêm sendo objeto de polêmica. A publicação Alimentos Industrializados, do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), questiona, por exemplo, o conceito de alimentos ultraprocessados, adotado pela “classificação nova” do Guia Alimentar. A categoria, que engloba macarrão e temperos instantâneos, bebidas energéticas, alimentos prontos congelados, embutidos, balas, diversos tipos de biscoitos e guloseimas em geral, dentre outros, é definida pelo Guia como nutricionalmente desbalanceada e “prejudicial à cultura, à vida social e ao meio ambiente”, devido à forma como esses itens são produzidos, comercializados e distribuídos.
De maneira semelhante, o Guia aconselha evitar os alimentos processados, como as conservas de legumes, os queijos e as compotas de frutas, porque os métodos usados em sua fabricação poderiam “alterar de modo desfavorável a composição nutricional dos alimentos dos quais derivam”.
A obra do Ital contesta diversos pontos: “do ponto de vista estatístico, não há comprovação de que exista uma diferença significativa entre os conteúdos nutricionais de alimentos processados em lares, restaurantes e indústrias”, afirma o texto na página 22.
Adiante, na página 24, o guia editado pelo Ital destaca: “do ponto de vista científico, não há comprovação de que os produtos de conveniência afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente”. Na mesma página, afirma ainda: “os ingredientes e aditivos alimentares utilizados na formulação dos produtos industrializados são regulamentados por agências internacionais e nacionais, que somente liberam seu uso após rigorosas análises (...). Portanto, do ponto de vista científico e regulatório, não existem bases para afirmar que a presença desses ingredientes torna um alimento inadequado para consumo (....)”.
Ao longo de quase 150 páginas, a publicação Alimentos Industrializados prossegue no esclarecimento de diversos pontos que, na avaliação de especialistas, foram tratados de maneira superficial pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.
A razão para essa abordagem pode estar na simplificação do tema. Embora ultrapassada, a ideia de que a indústria alimentícia esteja voltada exclusivamente para a produção de guloseimas e fast food ainda vigora em muitos meios, causando ruídos inclusive em relação ao modo como os nutricionistas atuam no segmento industrial. Tanto Maria Gandini quanto Elizabeth enfatizam, porém, que a indústria é cada vez mais sofisticada e abrangente, envolvendo equipes multiprofissionais que unem suas expertises técnicas para avaliar as necessidades do consumidor e alinhá-las às melhores práticas de produção, obedecendo a rígidas diretrizes regulatórias.
Muitas vezes, a indústria é parceira também do Poder Público e do Terceiro Setor. Uma boa demonstração dessa parceria ocorreu em novembro do ano passado, quando governo e indústria firmaram acordo voltado a reduzir a dose de açúcar nas fórmulas de bebidas e alimentos industrializados. O objetivo é reduzir, até 2022, cerca de 144 mil toneladas do ingrediente em algumas categorias.
A OMS sugere um consumo de açúcar de até 50 gramas por dia, mas o brasileiro consome 80 gramas ao dia. A parceria firmada pelo governo com o setor alimentício é voluntária e abrange as bebidas açucaradas, os biscoitos, bolos e misturas, achocolatados e lácteos.
“Acordos como este só podem ser firmados e alcançar bons resultados se o nutricionista estiver engajado na indústria”, reconhece Albaneide, do CFN. “Ele tem o conhecimento necessário para viabilizar essas e outras reformulações, dimensionando corretamente as mudanças de ingredientes, de métodos e tudo o mais”, ela conclui.